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há tanta coisa quebrada, por que não podemos apenas deixar o vento levar o que restou? ㅤ as raízes do meu coração se fixam e eu me pergunto se as minhas rosas sobreviverão ao afogamento que há dentro de mim. aqui, no interior do meu ser – onde eu plantei meu jardim –, aqui, onde você não pode tocar e destruir tudo com o seu poder de sugar corações sensíveis que florescem a fim de entregar-se ardentemente a um único ser terreno. mas não contente em consumir o que havia de belo na minha estrutura humana você adentrou o meu ser astral e se apossou da minha alma inteiramente para você, não foi? ㅤ eu te pergunto: você está feliz agora, que também as únicas rosas ainda vivas dentro de mim correm risco de morte em um naufrágio interno? te pergunto, você está feliz agora que eu verbalizo sem melindres o quanto há uma parte de mim que nunca irá perdoar tudo o que quebrou? ㅤ inteira; assim eu fui. um dia, antes de você. depois de você – tantos anos depois de você –, ainda tenho que reerguer raizes por aqui e derrubar muralhas novas. ㅤ ㅤ — 𝐊𝐞𝐧𝐧𝐢𝐚 𝐅𝐮𝐜𝐡
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dizem que eu ando cheirando a amor, um perfume quente que inebria e se ouve perfume que se ouve. onde já se viu? o amor faz assim: cria antíteses e metáforas que expressam o arrepio que se sente na boca do estômago quando se está amando eu, que já havia dado trégua e abandonado este lar marginal que se chama amor, voltei como uma inquilina traiçoeira para beijar-te os pés e dizer que fique comigo, que não partas tão logo, afinal, me entreguei antes que houvesse portas fechadas. estou aqui, me escolha, escolha sempre lutar por mim, não desista antes da batalha final, como outros antes de ti fizeram um amor juvenil, caretice que aflige até o âmago. choro como uma criancinha e te imploro por paixão como uma menina enamorada em seus anos mais imaturos eu digo a mim mesma que não iremos nos machucar ou pisar em falso, será uma valsa sem erros, nossos pés tocarão fogo nesse salão. você é a minha última moeda da sorte e eu estou frente à fonte dos desejos, você é a minha última aposta no amor, o meu último desejo. ㅤ ㅤ — 𝐊𝐞𝐧𝐧𝐢𝐚 𝐅𝐮𝐜𝐡
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Algumas epifanias vem do sol. Despretensioso, traz outra manhã e avessa as certezas da noite anterior. Tem alguns dias mais pesados que outros. Dias que levantar da cama consome uma energia além da que disponho e, rendida, permaneço ali, de olhos fechados, existindo. Outros, a luz que invade as persianas alimentam meu espírito e acordo pronta para correr uma maratona de 20km (emocionalmente, é claro, porque o condicionamento não me permitiria). ㅤ Tudo ainda está no mesmo lugar, eu é que enxergo diferente ℎ𝑜𝑗𝑒. Amanhã posso estar revirada novamente pelas centelhas do tempo. Mordida e debruçada nas lágrimas engolidas. Hoje, distraí-me. Cantei Fagner para a lua e dancei os pés descalços no chão frio à Édith Piaf. ㅤ (quarentena e devaneios — 𝑹𝒆𝒃𝒆𝒄𝒂 𝑴𝒂𝒚𝒏𝒂𝒓𝒕)
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o que posso fazer com um amor que não consigo tocar as mãos e sentir? ㅤㅤ você diz que eu sou o tema das canções que canta e que os meus poemas são a lírica dos teus dias de sol, que o meu perfume é um fantasma nas avenidas dessa capital enfurecida e melancólica. revelo todas as mentiras doces que têm me dito há anos e as estendo em um varal, revivo cada uma com o som desestabilizador da tua voz entrecortada pelo sinal ruim da operadora, diariamente, sempre que fechar os olhos não me basta para aliviar a ausência. ㅤㅤ eu sobrevivo de mentiras, e você, de que eu acredite nelas. como num conto de fadas. as promessas que fizemos debaixo das estrelas daquela maldita noite primaveril foram palavras ditas em vão ou o seu coração afinal é tão real quanto o meu? ㅤㅤ — 𝐊𝐞𝐧𝐧𝐢𝐚 𝐅𝐮𝐜𝐡
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Eu te projetei e me apaixonei pelo seu personagem. Eu me ceguei e, com altos graus de miopia, proibi-me de enxergar qualquer contradição na minha fantasia. Eu te coloquei numa caixa de vidro e convenci a ninguém, além de mim mesma, que eras frágil. Eu te vulnerabilizei no meu delírio e desfiz todas as minhas defesas para o seu deleite. Eu vislumbrei todos os seus ângulos viscerais, mas só guardei aqueles que me satisfaziam. Eu me enganei inconsequentemente, pois esse espetáculo dramático era mais emocionante que sua falsa partida. ㅤ Eu te convido novamente todas as vezes para esse labirinto e você sempre vem. Eu te vejo rasgando meus roteiros e enraizando-se cada vez mais fundo na minha história, no entanto, não posso evitar. Eu dou as cartas e invento um paralelo em que você não joga melhor que eu, mas eu sempre perco, porque você aprendeu a blefar. Eu dou vereditos e você ignora todos eles, descobriu que não fazem sentido algum. ㅤ Eu deixo você me trancar dentro da nossa fraude mutuamente consentida e impiedosa. Eu finjo que não conheço seus truques e você encena que não sabe o que te espera. Eu mantenho minha mentira mais descarada: eu não te amo. ㅤ [𝑹𝒆𝒃𝒆𝒄𝒂 𝑴𝒂𝒚𝒏𝒂𝒓𝒕]
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o que mais caberia nos meus versos senão o peso de uma ausência tão presente que nunca esvazia o seu lado da cama? a corrente de frio viaja pelo meu dorso, desce pela espinha e desnuda minhas costas de todos os cobertores da saudade. e não esquenta, nem se vai. a abstinência de você não me cai bem. ㅤ se a poesia te fosse uma estima, corresponderia-me também cartas sobre todos os nossos defeitos mais insensatos? aquilo que nos fazia mais bonitos eram as provocações das nossas impetuosidades mais incompatíveis. a calidez e veemência desse amor deu-se da consequência de uma teimosia mútua em 𝒇𝒊𝒄𝒂𝒓. ㅤ eu continuo teimando e você aprendeu aquiescer aos sinais que dá o universo. agora o espaço que era teu aqui está ocupado com a falta que me faz nas noites frias de sábado desse outono. ㅤ [𝑹𝒆𝒃𝒆𝒄𝒂 𝑴𝒂𝒚𝒏𝒂𝒓𝒕]
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à minha alma só arte e se os olhos são as janelas que sejam, dessarte, a poesia dos pedaços do corpo celeste escarlate que caíram aqui anteontem. ㅤ tal qual o solo sagrado de Vênus, o cínico toque ardente incendeia em intentos obscenos até os mais amenos dos âmagos. ㅤ e nem toda a censura diante deste ímpeto selvagem comede a fulgura de chamuscar todas as conjecturas que ousem limitá-la. ㅤ aqui não reprime-se o ser seja as extravagâncias os medos as audácias e o que mais couber em você. ㅤ a minha pele é só eu que visto ㅤ [𝑹𝒆𝒃𝒆𝒄𝒂 𝑴𝒂𝒚𝒏𝒂𝒓𝒕]
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𝐎 𝐪𝐮𝐞 𝐝𝐞𝐯𝐞𝐫í𝐚𝐦𝐨𝐬 𝐭𝐞𝐫 𝐬𝐢𝐝𝐨 {...} ㅤ eu deveria ter sido a menina dos teus olhos, antes que a nossamenina viesse ao mundo. herdando teus coeficientes intelectuais e a minha esbeltez. ㅤㅤ na infância ela seria como uma pintura feita em vênus: teus olhos e teus cabelos grossos. tua pele feita de raios solares e cetim. ㅤㅤ quando mais velha o rosto revelaria o meu olhar vulcânico e o mesmo coração titubeante que o meu. seria a nossa menina de nome grego e sonhos que de longe se pareciam com àqueles que desenhamos para ela. ㅤㅤ deveríamos ter sido esse impacto tectônico que traria ao mundo uma menina que seria só nossa. ela teria a doçura na voz que me faria chorar pensando em você. e mãos cautelosas que abraçavam em brasa cujos genes partiriam de mim.ㅤㅤ deveríamos ter sido. ㅤㅤ ㅤㅤ [𝐊𝐞𝐧𝐧𝐢𝐚 𝐅𝐮𝐜𝐡]
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você tem o sorriso mais bonito da cidade. e não é só o formato dos lábios que harmoniza tão bonito com os olhos apertados, ou as ruguinhas ao lado da boca do tanto que você repetiu esse mesmo movimento, tão expressivo, ao longo dos anos. é o som engraçado que rouba-te o ar quando não consegue controlar o riso. é como você mexe o corpo todo enquanto a graça esmaga-lhe as entranhas e dói a barriga de tanto rir. é como você o faz, mesmo nas conversas mais monótonas. ㅤ você sopra à vida os dias de inverno, a alma mais bonita da cidade. ㅤ [𝑹𝒆𝒃𝒆𝒄𝒂 𝑴𝒂𝒚𝒏𝒂𝒓𝒕]